domingo, 16 de novembro de 2014

Carqueja (Baccharis trimera)



KARAM, T.K. et al
Carqueja (Baccharis trimera): utilização terapêutica e biossíntese
Rev. bras. plantas med., Botucatu ,  v. 15, n. 2,   2013
 http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-05722013000200017

Parte da população brasileira já se habituou à utilização de espécies vegetais amargas para problemas hepáticos ou relacionados à digestão, sendo assim, a Baccharis trimera, popularmente conhecida como carqueja, é uma das espécies mais utilizadas nesta ocasião (Borella et al., 2006). O primeiro registro escrito do uso no Brasil data de 1931, informando o emprego da infusão das folhas e ramos.

O gênero Baccharis, incluído na tribo Astereae da família Asteraceae, é constituído por cerca de 500 espécies. Uma das mais importantes é Baccharis trimera (Less.) DC., também denominada Baccharis genistelloides var. trimera (Less.) Baker, com grande utilização na medicina tradicional e na produção de fitoterápicos (Borella et al., 2006).
As espécies do gênero Baccharis têm porte arbustivo, com altura entre 0,5 e 4,0 metros. Arbusto bastante ramificado na base possui caules e ramos verdes com expansões trialadas. As inflorescências são do tipo capítulo, dispostas lateralmente nos ramos, de cor esbranquiçada (Figura 1) (Lorenzi & Matos 2002). Apresenta ampla dispersão nos estados de Santa Catarina, Paraná, São Paulo e Rio Grande do Sul (Verdi et al., 2005).

FIGURA 1. Plantas de Baccharis trimera em estádio vegetativo (A) e reprodutivo (B), ramo de inflorescência (C) e detalhe dos frutos aquênios (D) (adaptado de Carreira, 2007).


Ações farmacológicas

As diferentes propriedades atribuídas à carqueja na medicina tradicional vêm sendo estudadas e algumas foram validadas, como consequência dos resultados obtidos (Lorenzi & Matos 2002). A validação do efeito hipoglicemiante foi feita com extratos de B. trimera (Xavier, 1967; Oliveira et al., 1995; Dickel et al., 2007). Utilizando extrato aquoso cru da planta em animais, Soicke & Leng-Peschlow (1987) validaram suas propriedades hepatoprotetoras. As propriedades digestivas, antiúlcera e antiácida foram validadas em estudos com cobaias, ao mostrar que os extratos da planta reduziram a secreção gástrica e tiveram efeito analgésico (Gamberini et al., 1991) e anti-inflamatório (Gené et al., 1992). Extratos alcoólicos de carqueja apresentam potencial antimicrobiano, conforme comprovaram Bara & Vanetti (1997) e, Avancini et al. (2000) confirmaram essa atividade in vitro a partir do decocto da planta.
De acordo com Alonso & Desmarchelier (2006), algumas atividades farmacológicas da carqueja dentre as quais é possível destacar a atividade hepática, pois os flavonóides, em especial a hispidulina, possuem ação hepatoprotetora e antioxidante. Também foi evidenciada atividade antimicrobiana e inseticida, de modo que lactonas sesquiterpênicas apresentam atividade inibitória frente às cercárias de Schistosoma mansonii, e do crescimento do Trypanosoma cruzi (Alonso & Desmarchelier, 2006).
Lactonas diterpênicas e flavonas ,em especial eupatorina, demonstraram atividade molusquicida sobre Biomphalaria glabrata. Além disso, os diterpenóides exibiram atividade repelente frente às larvas de Tenebrio molitor. Em oncologia experimental verificou-se que hispidulina, gencavanina, cirsimaritina e apigenina apresentaram ação redutora da mutagenecidade demonstrada pela substância 3-amino-1-metil-5H-pirido(4,3-b)-indol no teste de Salmonella typhimurium. Também foi relatada ação antihipertensiva, que através de atividade diurética resultou em hipotensão arterial. No sistema digestivo apresenta atividade antiulcerativa, através da infusão da planta inteira. Uma mescla de diterpenos obtida do extrato clorofórmico da parte aérea demonstrou atividade antiespasmódica, por bloquear as contrações induzidas pelo cálcio (Alonso & Desmarchelier, 2006).

Contraindicações e interações

A carqueja possui baixa toxicidade por via oral.

Em pacientes hipertensos que estejam em tratamento com anti-hipertensivos pode ocorrer sinergismo e elevar o efeito do fármaco, havendo a necessidade de ajuste das doses em caso de ingestão simultânea de extratos com carqueja (Alonso & Desmarchelier, 2006).

O uso da carqueja concomitantemente a inibidores da síntese de proteína (tetraciclina, cloranfenicol e netilmicim) também acarreta uma interação agonista (Betoni, 2006).


Componentes químicos (rota biossintética)

A fitoquímica do gênero Baccharis tem sido extensivamente estudada desde o início do século vinte e, atualmente, mais de 150 compostos já foram isolados e identificados. Embora o gênero compreenda mais de 500 espécies, Verdi et al. (2005) relataram que apenas cerca de 120 espécies de Baccharis foram estudadas quimicamente. Os compostos mais frequentes são os flavonóides e os terpenóides, como monoterpenos, sesquiterpenos, diterpenos e triterpenos (Moreira et al., 2003; Verdi et al., 2005). Dentre essas espécies, cerca de 30 tiveram a atividade biológica estudada, destacando-se as atividades alelopática, analgésica, antidiabética, antifúngica, anti-inflamatória, antileucêmica, antimicrobiana, antimutagênica, antioxidante, antiviral, citotóxica, espasmolítica, gastroprotetora, hepatoprotetora, inseticida e vasorrelaxante (Kupchan et al., 1976; Soicke & Leng-Peschlow, 1987; He et al., 1996; De las Heras et al., 1998; Nakasugi & Komai, 1998; Torres et al., 2000; Weimann et al., 2002; Feresin et al., 2003; Oliveira et al., 2005).
A composição química da carqueja pode ser considerada regio-seletiva, ou seja, na parte aérea os constituintes químicos encontrados são predominantemente flavonóides (hispidulina, rutina, eupatorina, luteolina, nepetina, apigenina, kaempferol, cirsimaritina, cirsiliol, eriodictiol, 5-hidroxi-3', 4',6,7-tetrametoxiflavona, quercetina, 3-o-metilquercetina, genkwanina e 7,4'-di-o-metilapigenina), diterpenos (bacrispina, 1-desoxibacrispina, ácido hautriwaico e sua lactona), lactonas diterpênicas do tipo trans - clerodano (malonil clerodanos), estigmasterol, óleo essencial composto por á-pineno, â-pineno, canfeno, limoneno, acetato de carquejilo, carquejol, â-ocimeno, ledol e uma saponina derivada do ácido equinocístico. Por outro lado, no sistema radicular encontram-se diésteres terpênicos relacionados com o carquejol (Alonso & Desmarchelier, 2006).
Contudo, os flavonóides estão entre os metabólitos secundários encontrados em maior quantidade na Baccharis trimera e, que apresentam maior atividade terapêutica. Podem ser divididos em várias classes, de acordo com o grau de oxidação e de insaturação do heterociclo (Figura 2). Sendo assim, ocorrem flavonóis (e.g. quercetina), flavonas (e.g. luteolina), isoflavonas (e.g. genisteína), flavanonas (e.g. naringenina), antocianidinas (e.g. cianidina), flavanóis (e.g. epicatequina) e as proantocianidinas, ou taninos condensados, que são flavanóis poliméricos (Marques, 2008).

FIGURA 2. Diferentes classes de flavonóides (adaptado de Huber, 2008).

A biossíntese dos flavonóides (Figura 3) ocorre por uma via mista, a via do ácido chiquímico e a do acetato. O ácido chiquímico é o precursor do composto inicial da síntese dos flavonóides, a fenilalanina. Este aminoácido aromático depois de desaminado pela fenilalanina-amónia-líase (PAL) produz ácido cinâmico, que por ação da 4-hidroxilase cinamato é convertido em ácido p-cumárico. Estas duas enzimas estão associadas, o ácido cinâmico não é libertado pela PAL, mas sim transferido diretamente para o centro ativo da segunda enzima (Marques, 2008).

FIGURA 3. Biossíntese dos flavonóides (adaptado de Marques, 2008).

Posteriormente, ocorre a adição da CoA, catalisada pelo p-cumarato-CoA liase, originando a p-cumaroil-CoA, que ao reagir com três moléculas de malonil-CoA forma a naringenina chalcona. Esta reação é catalizada pela chalcona sintetase. Finalmente, ocorre a ciclização do anel C, catalizada pela chalcona isomerase, para formar a naringenina que por fim origina a hispidulina, por meio de metoxilação (Figura 3). Desta forma, nos flavanóides, o anel A é formado via acetato, enquanto o B resulta da via chiquimato e os três átomos de carbono que ligam o anel A ao B derivam do fosfoenolpiruvato (Marques, 2008).

CONCLUSÃO
A revisão bibliográfica possibilitou caracterizar morfologicamente a carqueja, expor algumas propriedades terapêuticas e, descrever a rota biossintética do flavonóide hispidulina, que se trata de um dos principais metabólitos secundários, responsável pelo efeito hepatoprotetor e antioxidante. A compreensão e conhecimento das enzimas e substratos envolvidos na biossíntese desse metabólito caracterizam-se como importantes ferramentas no controle de qualidade e na padronização da terapêutica da carqueja. Apesar dos estudos desenvolvidos com a planta, é importante a condução de novas pesquisas buscando determinar potenciais ações terapêuticas da carqueja e formas de ação. Em geral, no Brasil, considerando a grande diversidade de espécies potenciais, há uma maior necessidade de estudos relacionados à composição química e atividade terapêutica de plantas medicinais.